23/03/2009

Public.originalmente no jornal A TRIBUNA LIVRE e no www.farofa.com


Nino Bellieny: A cidade e as enchentes

Reprodução da Internet

A cidade nasceu e cresceu à margem de um rio. Por ser mais fácil coletar a água, ter o pescado, poder transportar a produção rural e adquirir os bens feitos em outros centros. Assim se fez íntima do manancial. 

As ruas foram aos poucos traçadas junto com o destino. O tempo, mais volumoso que as próprias águas do rio cheio de pedras, soprou construções, demoliu outras, trouxe e levou gente. 

E as enchentes... tornaram-se maiores, proporcionais ao descaso dos homens com o meio-ambiente. A cidade repetidamente ficando refém das variações climáticas, dos aterros e lixões, do encolhimento do rio e do imediatismo prático. 

Até que, depois de tantas perdas à cada ano maiores, alguém preocupado com um futuro nefasto encomendou um estudo onde todas as mazelas pudessem ser reveladas e evitadas. Então, um destes técnicos-burocratas nascidos em chocadeira – elétrica de uma metrópole qualquer, decretou sem um pingo de preocupação a receita ideal para acabar com as enchentes: acabar com a cidade.

Levá-la para outro lugar, uma latitude e longitude mais segura, um paralelo sem o rio por perto. Sem o perigo de prédios caindo, gente morrendo e economia paralisada. O senhor técnico sabe como lagos artificiais de hidroelétricas engoliram vilas e cidades inteiras. Para ele e seus colegas de aparelhagens sofisticadas encastelados em vidros de alguma capital cinzenta isto é fácil e indolor.

Não sabe ele o quanto significa aquela praça onde casais surgiram. A torre da igreja de milhares de casamentos, as ruas e suas esquinas de conversas sem pressa, o campo de futebol, o parque de exposições e a imagem sagrada de braços abertos lá no alto do morro.

O cientista gelado das soluções mais geladas não conhece as lendas locais. Não lhe interessa quem foi o coronel que deu nome à rua principal nem o sacrifício demorado para ser construída aquela casa tão bonita onde à noite os moradores dormem ouvindo as pedras cantantes do rio. Para ele parece fácil desmontar aquele pequeno mundo como um quebra-cabeça e carregar para mais ao norte ou mais ao sul. 

Os mortos queridos ficarão esquecidos no velho cemitério e todas as canções entoadas nos festivais, todas as preces das igrejas, todo o riso das escolas, o pranto do hospital e as árvores testemunhas de tantas histórias serão apenas fotografias.

O super-técnico do óbvio não se importa com a decepção dos que foram em busca de sua sabedoria. Um frango de granja tem mais sentimentos do que ele. Ele, o cientista do apocalipse, pode tudo com um toque no seu computador. Só não imagina o poder de recuperação da pequena cidade. Nem o imenso amor dos que lá nasceram ou passaram alguns dos melhores momentos da vida.

Amor capaz de reconstruir todas as vezes que for preciso cada sonho levado pelas águas. Carinho suficiente para mudar conceitos e mentalidades que ajudem a minimizar as próximas enchentes e nunca mais ter o dissabor de ouvir de alguém de outro planeta idéias tecnicamente corretas demais para quem ama a terra natal. E nela, só deseja a mais básica das emoções: ser feliz.

Nino Bellieny

Informações: Ofarofinha

                                                 
 

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