AVE LONGE DO CÉU

NINO BELLIENY

São exatamente 6 horas da tarde em uma cidade não muito grande do Centro –Oeste brasileiro.O calor é de fritar ovo em tampa de bueiro ,certamente temperado com o colorau de uma espessa poeira .Na praça em frente à igreja matriz,estou parado esperando o momento de ir ao ginásio local onde a formatura do curso de agronomia,turma de 2008,vai acontecer.Não conheço ninguém nem nunca ali estive sequer em sonhos.O alto-falante da igreja deixa escapar a Ave –Maria de Schubert,uma das mais tristes da mais triste das canções que conheço.Sozinho,cansado da viagem do Rio até Campo Grande de avião e depois de carro alugado até aquele centro regional de estudos agrários,estou ali mas ,não estou.Meu pensamento me ergue além das nuvens e como uma andorinha em busca do verão ,me sinto voando em direção ao passado.Ou é o passado que voa até a mim.E de repente ,pela máquina mental do tempo, estou em casa da mãe ouvindo a mesma música,vinda também de um templo católico, no alto da colina em Morro do Coco.Mais de dois mil quilômetros e mais de trinta anos me separam do local.Na cidade estranha onde o calor faz o terno parecer uma armadura medieval, está o meu corpo ,só o meu coração é quem caminha para a aula de catecismo nas escadarias da Igreja de N.Sª da Penha.Nos preparam para a Primeira Comunhão e isso é feito por uma moça bonita cujo nome não me recordo .
Sou um garoto de nove anos e meus ouvidos bebem cada palavra sobre os sacramentos.Quando eu descer dali,irei para o campinho de D.Rosa e com o Lenito Pelé,Ninito, Tarciso e outros amigos ,vou jogar bola até o anoitecer.Estou num sábado e domingo será a mesma coisa,bola e bola o dia inteiro.A miopia me atrapalhará,mesmo assim,eu não sei nada sobre isso e só aos onze anos a D.Edith, a professora parecida com Brigitte Bardot irá contar para o meu pai que eu preciso usar óculos.Tudo tem a mais pura alegria infantil nas tardes da escola durante a semana.Meu amigo Cacau é o craque que todos querem no time.Depois lerei as revistas de Tarzan que são da coleção do Tadeu.Meu irmão Alberto Rodolfo já pintou de azul meu jeep de brinquedo,minhas irmãs ouvem música,mamãe lê a Bíblia e papai está pelo interior conferindo a rede de eletrificação.Chegará ao cair da noite,ouvirá as canções de Moacir Franco e contará piadas .Estou feliz.Namoro uma amiguinha de escola ,mas,ela não sabe disso.Talvez algum dia eu tome coragem e diga,porém,eu só tenho nove anos e de amor só sei que dispara o coração e deixa a gente bobo,querendo agradar,pagar coca-cola,dar balas para quem se gosta.Beijo,só nas fotonovelas e na televisão,quando os adultos na sala,mandarão a gente fechar os olhos pensando que obedeceremos.Meus amigos Waguinho e Emmanoel são mais velhos e já contam como é,embora a gente desconfie que eles tenham mais imaginação do que prática.O Brasil acabou de ser tri-campeão do mundo,Pelé é o deus da bola,poucos carros nas ruas,os Beatles acabaram só ainda não sabemos,a ditadura prende e arrebenta nos porões e também só saberemos muitos anos depois.Aos domingos vou com a minha mãe assistir ao Flávio Cavalcanti na casa de “seu” Paulo Lamônica e tomar o inigualável refresco de Q-suco feito por D.Mariquinha.Semana que vem iremos à Cardoso Moreira visitar vovô Alberto,pai do papai ,brincar com os primos,andar de bicicleta,comprar as bombinhas de “seu” Tito e ir ao Bananal onde mora a tia Angelina e seu pudim de caçarola cujo gosto-gostoso não sai da boca. Cardoso é bem maior do que Morro do Coco,tem jeito de cidade ,tem cinema,estádio bonito e um rio com cachoeiras... e eu,tenho apenas nove anos.
Que nada...já passei dos quarenta.A Ave-maria acaba ,o calor não diminui,continuo na cidadezinha estranha,um funcionário da faculdade vem me chamar ,estico as mangas do terno,faço cara de adulto,me concentro ,ficando de novo no momento presente.No céu,um bando de aves do pantanal passam em formação perfeita.Aqui embaixo,ninguém me conhece,nem consegue imaginar que o homem de terno azul-marinho e gravata, durante alguns minutos esteve menino correndo atrás de uma bola de plástico recheada de sonhos e recordações.Eterno menino feliz.