25/03/2009

ACORDE E VENHA VER O COMETA (Para Mãe,Pai,Leila,Lêda & Alberto)


NINO BELLIENY

Atrás da casa,o riacho.Vinha da Mata da Santa,fazendo curvas por entre outras poucas casas ao longe,vivo,límpido,cheio de barrigudinhos e toda uma população aquática.O barulho ritmado das águas correndo foi com o toca-discos do meu pai,um dos responsáveis pela trilha sonora de uma infância.A noite,o reforço da orquestra de grilos e batráquios.Pela manhã,os sanhaços,bem-te-vis,todos em liberdade e o nosso papagaio, teciam a rede de meus sonhos.Eu vivia no Paraíso e sabia disso.Minha irmã mais nova era a companheira fiel das brincadeiras sem fim .Reinávamos naquele mundo com um cãozinho muito inteligente chamado Jerry e amizade melhor eu jamais teria.A casa era no meio do nada e neste nada ,um pequeno campo de futebol,o riacho,muito pasto,o morro do outro da lado da estrada de chão batido e uma única residência próxima,onde viviam D.Rosa Alvarenga, mãe Dudu,dois filhos e netos.O cheiro de goiabada cascão fervendo nos imensos tachos de cobre dessa vizinha e o de terra molhada, arquivam-se entre os melhores aromas da minha meninice. Tinha também o mugir tristonho dos bois ao escurecer,a voz da minha mãe cantando hinos da Igreja Batista e a minha irmã mais velha girando sem parar o dial do velho rádio à válvulas.Eu me zangava ,queria que ela se fixasse em alguma estação.Nem de longe eu imaginava que aquilo me ajudaria algum dia a entender um pouco do assunto e fazer um ouvinte prestar realmente atenção à uma programação radiofônica.
Éramos seis,como no título daquele livro que depois virou novela.Meus pais,meu irmão e minhas duas irmãs.Não havia nuvens pesadas na linha de pesca do horizonte. Não havia serpente infiltrada no meu Paraíso.Eu era feliz e sabia.Só não sabia que não era como nas histórias de um livro e que tal felicidade não seria para sempre.Os soldadinhos do Forte Apache,as músicas na varanda,o riacho cantante,o teto infinito de estrelas,tudo findaria.Como se jogada num liquidificador a vida se fragmentou em milhares de pedaços.Mudamos de residência,mudamos de sonhos e pouco tempo depois,meu pai mudaria de família.
Por isso mesmo, a casa no meio do nada é um gibi valioso dentro da minha rara coleção. De vez em quando,em noites frias ,abro-lhe as páginas,cheiro o papel,confiro as figuras,refaço balões,recrio quadrinhos.O adulto cansado volta a ser um menino revivendo cada momento,como um em especial ,feito de magia e mistério:minha mãe e todos nós em silêncio,de madrugada, maravilhados acompanhando o rastro prateado de um cometa. Na cortina da retina este brilho permanece. Em outro, vejo a casa se encher de alegria e peripécias: minhas irmãs estão rindo, meu irmão desenhando, minha mãe canta baixinho com a sua tristonha voz de soprano e meu pai, ah, meu pai!, descansa depois do almoço, para mais tarde voltar ao trabalho. Eu, apenas observo, talvez pressentindo o perecível.
Agora,fecho o gibi e os olhos. Dormirei em paz, pois se a felicidade é dividida em cotas e elas devem ser aproveitadas integralmente,a minha eu aproveitei e para sempre a terei aqui no melhor do meu coração. Por isso,só por isso, vale à pena seguir vivendo.

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